quarta-feira, 24 de outubro de 2012

O caminho do ARQUITETO

Último brasileiro a vencer o Pritzker - o prêmio Nobel da arquitetura -, depois apenas de Oscar Niemeyer, Paulo Mendes da Rocha é um nome fundamental da arquitetura brasileira. Capixaba de nascimento, radicado em São Paulo (onde construiu uma identidade arquitetônica até hoje seguida) desde menino, o arquiteto ganha nesta sexta-feira - um dia após completar 84 anos - a maior retrospectiva de sua carreira, no Museu Vale, em Vitória. "Paulo Mendes da Rocha: a natureza como projeto" vai ocupar toda a instituição com 20 de seus trabalhos mais importantes, como o Museu Brasileiro da Escultura (MuBE) e a reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em maquetes e dois filmes feitos pelo documentarista Gustavo Moura (autor de "Cildo", sobre o artista plástico Cildo Meireles). Em entrevista ao GLOBO, Mendes da Rocha discorre sobre as mudanças urbanísticas no Rio, o "desastre" do automóvel e a falta de parcerias do governo com bons arquitetos para a elaboração de projetos públicos. E afirma: "A cidade é tão importante quanto a língua".

Como o senhor vê essa retrospectiva em Vitória, sua cidade natal, mas, ao mesmo tempo, um local com poucas obras suas? Aproveitando a ideia de retrospectiva, que projetos o senhor destacaria como aqueles com que tem mais conexão?

Sempre tive muito cuidado com o lugar, principalmente no que diz respeito à construção e à geografia. E Vitória mostra-se muito favorável a isso, com o mar que a cerca, como o Rio. Minha obra não foi feita lá, mas sempre achei importante considerar esse estilo de cidade em que a natureza está presente não só como paisagem, mas como um conjunto de fenômenos muito enérgico, às vezes agressivos. Porque a cidade é feita para que possamos viver. A natureza em si não é suficiente. Em Vitória, está em curso o Cais das Artes, projeto encomendado pelo governo para abrigar um museu de arte contemporânea e um teatro em que caibam montagens de óperas, por exemplo ( o lugar deveria ter sido inaugurado no começo deste ano, mas o custo disparou, o contrato com a construtora foi rescindido, e a obra só deve ficar pronta em 2014). É difícil eleger um projeto. Dentro dessa questão de arquitetura e natureza, arquitetura e geografia, que muito me interessa, destaco um estudo que fiz para a Universidade de Montevidéu, em que imaginei transformar a baía da cidade numa praça de água com permissão para navegação. Esse foi o diagnóstico de uma cidade. O arquiteto consegue aflorar virtudes da natureza com uma obra, uma intervenção.

Em entrevistas recentes, o senhor se disse "desapontado" com o urbanismo atual no Brasil. Em relação ao Rio e às novas propostas urbanísticas por conta dos Jogos Olímpicos, como a revitalização da Zona Portuária, qual a sua opinião?

É sempre um elogio ao projeto original as formas de se reviver um determinado planejamento urbano. Dito isso, acho que falta atenção à vida doméstica. As revitalizações e obras não podem ser feitas para um espetáculo. Temos que ficar com um belo tesouro desse pretexto ( as Olimpíadas ) e não com um lixo imprevisto. O Rio tem uma tradição arquitetônica de Lucio Costa, Niemeyre, Affonso Eduardo Reidy... Não vamos agora entregar tudo de uma hora para outra como se fosse algo isolado.

Falando nessa tradição, como o senhor vê a cidade hoje em relação às novas construções e projetos?

Houve um período em branco, de fato, nos anos 1970, 80 e 90. Muita perseguição. Eu mesmo fui cassado pelo AI-5. Mas, hoje, não acho que faltem concursos. Eles são sempre discutíveis. Se há quem saiba julgar, há quem saiba fazer. O que está faltando é planejamento governamental e alianças entre público e privado. Grandes arquitetos deveriam estar sendo chamados pelo governo para fazer projetos para a cidade, como aconteceu com Lucio Costa, Niemeyer e Reidy. A questão urbanística é de caráter político. Só o governo pode promover grandes projetos. Brasília não foi iniciativa privada de ninguém, e aposto que atraiu muitos negócios privados. Não tem que ser uma disputa entre público e privado. Outra coisa importante é que precisamos nos libertar do automóvel. O automóvel é um desastre. E, se você persegue o mesmo modelo há anos, podemos dizer que estamos numa rota dos desastres. O sentido de transformação ainda é muito acanhado. Os projetos de metrô no Brasil são ridículos em relação aos de outros países. A arquitetura se reflete numa educação desde a infância. Não sei como um menino não tem aulas de urbanismo na escola. A cidade é tão importante quanto a língua.

Quando o senhor ganhou o Pritzker, em 2006, o júri destacou sua "prática de uma arquitetura de profundo engajamento social". Como o senhor vê a construção das chamadas habitações populares?

Eu tenho uma opinião radical quanto a isso. Se você não admite que uma casa com esgoto, telefonia e luz elétrica é uma casa urbana como outra qualquer, eu discordo. É uma tolice achar que há casas que podem ou não ser "populares". A casa é a casa. O que os arquitetos dizem com ironia é que o invejável em uma casa é seu endereço. A cidade tem que ser construída para todos. Você não pode fazer um kilowatt popular, compreende? Nós esquecemos que a favela foi consentida. Era a senzala de que todo mundo precisava, porque, sem zelador, faxineira e babá, ninguém poderia viver. O problema é que não se fala nisso. O urbanismo tem que ser feito com um ingrediente fundamental: a abolição do cinismo.


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